quinta-feira, 29 de julho de 2010

O Vencedor

Talvez esta seja uma das canções da banda que primeiro desperte o interesse de um ouvinte casual dos Hermanos para a profundidade de sentido que suas composições transportam. Isso porque, em tom de conselho, o eu lírico passa a mostrar de forma simples  quase ingênua, que ao contrário do que comumente se diz, ser um vencedor não implica, necessariamente, em viver em paz. Mas vamos à canção para examinar cuidadosamente o que ela nos diz e tentar entender esse conflito à luz de toda a sua letra:


A começar pelo título, é preciso que o leitor se atente para a carga de sentido que ele carrega, buscando  entender o conflito ali presente: podemos ler, mesmo que forçadamente, "Vencedor" como aquele que vence a dor: "Vence / dor", ou, ao contrário, aquele que por ela, passivamente, se dá por vencido: "Vence / dor". Teríamos, assim, duas realidades conceituais em uma mesma palavra...

A primeira estrofe (em 8 versos) parece apresentar quatro ideias essenciais divididas em dísticos  grupo de estrofes em dois versos. Elas se apresentam no imperativo, em tom aconselhador, como se convidassem o ouvinte a repensar sobre concepções já sedimentadas, reconntruindo, assim, valores proverbiais que cotidianamente se fazem presente em sociedade.  E assim vai se construindo, não a imagem de um "vencedor" que seja livre de defeitos, de dificuldades, mas daquele que está propício a errar, que é imperfeito e que enxerga vitória na simplicidade das coisas da vida. E é nesse sentido que podemos entender o primeiro dístico:

       Olha lá quem vem do lado oposto
       e vem sem gosto de viver

Nele, pode-se entender o lado oposto como um modo de viver contrário àquilo que é natural da vida. Como um caminho, supostamente, tomado por aqueles que acreditam cegamente num mundo de fantasias, de utopias, em que a imagem do vencedor, do herói, é construída à distância de uma realidade sincera. Ao contrário, ela se torna parecida com a realidade a que vemos ingenuamente representada em filmes e seriados de TV. Em outra canção do mesmo album, em " Cara estranho", o eu lírico menciona essa representação:

     Talvez se nunca mais tentar
     viver o cara da TV
     que vence a briga sem suar
    e ganha aplausos sem querer
    (...)

Depois, no segundo dístico, ao dar continuidade a essa ideia, temos a construção da imagem dos bravos como aqueles que não são passíveis de sofrimento e dor, como se a própria alcunha de bravura e coragem, por si só, lhes tornassem seres invencíveis. Logo, a qualidade de "vencedor" (vale dizer, do invencível)  é aquela que tenta esconder a dura realidade da vida   que implica, necessariamente, em sofrimento, dor e tristeza. O vencedor, por sua vez, acaba por se tornar escravo de sua própria "invencibilidade", não tendo, assim, ao menos a chance de sofrer... Como se o estado de estar são e salvo de sofrer lhe conferisse segurança  um verdadeiro engano:

    Olha lá que os bravos são escravos
    sãos e salvos de sofrer

Nos dísticos finais da estrofe, o eu lírico dá continuidade à reelaboração do conceito de "vencedor" e deixa bem claro que perder não significa, necessariamente, ter uma vida de menos êxitos ou uma vida menor.  Ou seja, a busca incessante pela vitória acaba por apagar, ou fazer perecer a glória de chorar. Afinal, o que seria se não houvesse momentos de choro e tristeza, o que restaria da vida se não houvesse momentos de perda  e reflexão. Uma composição que talvez faça florescer essa ideia está presente no refrão da canção Perdendo os Dentes, de John Ulhoa e Fernanda Takai:

  


     As brigas que ganhei
    Nem um troféu
    Como lembrança
    Pra casa eu levei
    As brigas que perdi
    Estas sim
    Eu nunca esqueci
    Eu nunca esqueci
    (...)



Já na segunda estrofe da canção o eu lírico surge em primeira pessoa dividindo, visualmente, as estrofes anteriores das estrofes seguintes, marcando assim uma passagem clara que pode ser, inclusive, observada no andamento da música. Logo, observa-se que, se no início da canção  ele  se  referia à condição do outro, a partir de agora ele passa a falar de si mesmo e de como passou a enxergar a vida. Uma vida em que ele tem a liberdade de divagar a procura de respostas, sem se preocupar em competir, sem se preocupar em ser um vencedor: 

    E eu que já não quero mais ser um vencedor,
    levo a vida devagar pra não faltar amor

Esse momento de passagem sugere ao ouvinte uma reflexão, que aliás se apresenta como o clímax da canção. E e na terceira estrofe que a argumentação das estrofes anteriores é descarregada em cima do próprio ouvinte, numa tentativa de fazer com que ele reveja a realidade que o cerca e, por conseguinte, a sua própria maneira de encarar a vida, deixando, assim, de esconder aquilo que o torna consciente de si mesmo, o seu sentimento, buscando ouvir a partir daí a voz do seu coração. Nesse momento o silêncio da voz - e o vazio produzido, sugere uma reflexão interior.

    Olha você e diz que não
    vive a esconder o coração




terça-feira, 6 de julho de 2010

O Velho e o Moço

Esta é a letra da canção, na íntegra, escaneada do encarte do CD Ventura, lançado em 2003:



É bem provável que essa canção tenha lhe causado estranhamento quando ouvida pela primeira vez. A verdade é que a composição de Rodrigo Amarante parece exigir do ouvinte maior atenção do que de costume. Comecei a compreendê-la melhor quando entendi que o seu título – O velho e o moço é peça de fundamental importância para que o ouvinte desvende seu mistério e alcance, assim, a interpretação do texto. Seu título estabelece uma temática universal que sugere, através da velhice e da mocidade, uma reflexão sobre aquele que, em nossos dias, talvez seja um dos maiores inimigos do homem: o tempo.

Ao observar atentamente a estrutura das estrofes podemos perceber sem muito esforço que a composição apresenta uma alternância de vozes líricas que expressam o fluxo de consciência tanto do velho quanto do moço. Ora somos levados a conhecer o conformismo, o cansaço, o saudosismo do velho, ora a conhecer o desprendimento, a vaidade, o ímpeto inconseqüente dos anseios do jovem. Neles podemos notar que o tom é de desabafo, de reflexão, de vertigem. No caso do velho, daquilo que, no passado, quase lhe causou arrependimento. No jovem, a ansiedade daquilo que pode, ou não, lhe ocorrer no futuro conforme suas decisões.

Se observarmos a disposição das estrofes vemos sem muita dificuldade como suas vozes são distribuídas em períodos diferentes. A começar pelo velho, que se exprime a partir da estrofe 1 até a estrofe 4; em seguida, temos a voz do jovem que se exprime a partir da estrofe 5 e segue até metade da estrofe 8; e por fim, notamos nos versos restantes a alternância das vozes que, em determinado momento, se unificam, e revelam, assim, não apenas uma reflexão sobre o tempo, mas também uma reflexão sobre o acaso, o destino – seja ele passado, ou futuro. Se imaginássemos uma estrutura da canção poderíamos rascunhá-la da seguinte maneira:


É preciso lembrar, também, que toda composição poética segue uma forma  seja ela fixa, ou não. O versos de Amarante, por exemplo, seguem, a princípio, a métrica do verso pentassílabo (ou redondilha menor), ou seja, são divididos, em geral, em cinco sílabas poéticas. Essa escolha não é gratuita, foi usada porque ela se faz bastante presente nas trovas populares (pode ser facilmente decorada) e produz um ritmo circular na canção, talvez com a intenção de sugerir certa nostalgia e perplexidade no poema, fazendo que o ouvinte imagine, mesmo que inconscientemente, um túnel temporal que o remeta tanto ao passado quanto ao futuro.

Além disso, podemos perceber que o timbre do teclado, dos metais e a marcação do tempo pelo bumbo sugerem o devaneio do velho e do moço, pois embora se refiram ao tempo, as vozes líricas o enxergam cada qual pelo seu prisma. Na melodia percebemos essa divisão quando o vocalista deixa de cantar e os instrumentos tomam lugar na canção, sugerindo o momento de passagem do tempo. Deixa-se, então, de exprimir reflexões quanto ao passado e passa-se às reflexões quanto ao futuro.

Outro detalhe que deve ser observado é a consonância entre a letra e a melodia da canção. Por exemplo, se repararmos, respectivamente, os primeiros versos das estrofes 3 e 7, podemos observar o seguinte:

3. - E se eu fosse/ o primeiro a voltar/ pra mudar o que eu fiz,/ (...)
7. - E se eu for/ o primeiro a prever/e poder desistir/ (...)

A melodia e a letra parecem tecer entre si semelhanças e sugestões que vão compondo pouco a pouco o universo da canção. Notamos nos versos 3 e 7 que tanto o saudosismo do velho quanto a ansiedade do moço são marcados musicalmente com notas altas, como se a elevação da voz à notas mais agudas aludissem ao anseio e inquietação das vozes líricas à  realização de seus desejos, quer se referindo  ao passado, quer referindo ao futuro.

Além disso, é preciso atentar como o desdobramento das palavras sugere, quase espontaneamente, o acabamento da estrutura da canção. É o que reparamos no verso 5 da estrofe ,  a palavra gasto, por exemplo, remete às coisas já gastas, às coisas passadas, à tradição a que a voz lírica do velho se refere. Outro exemplo seria o 3° verso da estrofe 5. A palavra vaidade, desdobrada, transforma-se em vai idade, fazendo menção, assim, à transitoriedade e legeireza a que acomete a juventude do moço. Há outros exemplos, mas tornariam a leitura cansativa...

Em verdade, o propósito deste blog não é extinguir as possibilidades analíticas dessa canção, ou de qualquer outra que pretenda expor em análise. O trabalho aqui desenvolvido nada mais é do que o desejo de decifrar passo a passo o enigma da palavra, em especial, da criação poética da banda Los Hermanos, oferecendo aos leitores ainda mais deleite com a obra. Conto com a contribuição dos leitores,  afinal, essa foi apenas uma das possíveis leituras. Gostaria de conhecer, também, a sua. Se sentir vontade, comente.

Até a próxima!